Criação literária

Carla Dias
4 min readAug 26, 2021

De onde vem a inspiração?

Comecei a escrever muito cedo, tão cedo que nem sei precisar quando. Acredito que foi logo que entendi o que era juntar palavras para dizer algo que não conseguia entregar por meio da fala. Escrever foi a maneira que encontrei de me expressar, valendo-me da ficção, mas muito atenta à realidade, a minha e a das outras pessoas.

Para mim, a escrita sempre foi confidente. Escrevo ficção, mas ela não existiria se não fosse a realidade, ou seja, há muito do que já presenciei e vivi nos meus registros literários. No entanto, para se valer da realidade própria, a fim de criar uma história, é preciso que o escritor compreenda que essa verdade é um ponto de partida para o desenrolar de uma trama, e que no cenário literário de ficção ela não pertence mais a ele. Só assim a criação acontecerá a partir de uma verdade que, para ele, teve marcante importância, porque ela passa a pertencer ao personagem e ter sua própria dinâmica na condução das consequências por ela geradas.

Obviamente, se você for escrever sobre a História do mundo ou a biografia de uma pessoa, sobre fatos, um trabalho sério de pesquisa, organização e confirmação de informações é essencial. Em casos como este, deixe a ficção descansar e garanta que seu texto seja claro o suficiente para alcançar o leitor, um relato bem elaborado da verdade à qual se refere.

Demorei muito a me considerar escritora, mas como esse fazer tem sido parte da minha vida desde que me conheço por Carla, eventualmente desisti e assumi o posto, o que significou arcar com as consequências do que escrevo. Essa parte resolvida, tornei-me alguém capaz de lidar com as negativas dos leitores, sem que elas ditassem o rumo dos meus escritos, mas me permitindo refletir sobre os pontos em que a crítica alheia pudesse me ajudar a melhorar a escrita.

Autocrítica — e a minha tem lá a sua personalidade insurgente — é sempre bem-vinda, contanto que não se torne um castigo, um veto ininterrupto. É preciso dar espaço aos acertos, pois o processo para identificá-los e fortalecê-los passa por muitos erros.

Estar aberto a aprender a partir do outro não é trair a si mesmo. Na verdade, é algo que pode nos ajudar em qualquer profissão, e mais ainda na vida, no nosso diariamente, como indivíduos e também no coletivo. É o exercício sempre bem-vindo da escuta.

Se você é dos escritores que gostam de criar suas histórias de ficção partindo de verdades, das suas ou daqueles que o cercam, incluir essa verdade na sua ficção levará à árdua tarefa de fazê-la caber em uma criação/invenção, sem que perca as características que chamaram a sua atenção, em um primeiro momento ou que seja limitada por filtros de proteção, a fim de poupar os envolvidos de se reconhecerem diretamente na tal realidade.

Não se esqueça de que estamos falando sobre ficção.

É importante que o escritor saiba criar uma distância segura entre a realidade que experimentou, ou alguém lhe confidenciou, e a ficção. Assim, ele poderá desenvolver a trama sem esbarrar em pequenas fugas de proteção acionadas pelo teor pessoal dessa realidade.

Um bom tema sempre ajuda no desenrolar de uma boa trama. No entanto, engana-se quem acredita que um bom tema garantirá um resultado excepcional. Há escritores que conseguem abordar questões cotidianas, que passariam facilmente despercebidas, não fosse a capacidade deles de transformá-las em ingredientes capazes de fundamentar um enredo próprio de uma obra de excelência.

O contrário também acontece, então, cuidado.

Os quatro romances que escrevi nasceram por conta de verdades: a vontade de um amigo de se exilar (Os estranhos), a escolha do nome da minha sobrinha (Jardim de Agnes), o desaparecimento de uma pessoa querida, e as inúmeras ligações de uma empresa de telemarketing atendidas em um mesmo dia (Estopim) e a história de vida de alguém contada por outra pessoa (Baseado em palavras não ditas). Nenhuma das obras aborda especificamente as pessoas ou situações que me levaram a escrevê-las. No entanto, cada uma das verdades que me levaram a escrevê-las despertaram questionamentos mais profundos, e a partir deles eu criei os personagens para as histórias que desejava de contar.

A criação literária de ficção pode ser substancialmente beneficiada quando o autor é um bom ouvinte. A forma como o escritor conta uma história, como aborda os temas e faz as conexões entre os acontecimentos é o que define a qualidade da obra. A construção dos personagens também é fundamental, mas falarei exclusivamente sobre isso em outra oportunidade.

--

--

Carla Dias

Escritora, publiquei sete livros, sendo o mais recente o romance Baseado em palavras não ditas (2019). Baterista da banda OsQuatro. Produtora cultural.