A santa

Carla Dias
12 min readOct 14, 2020

Em nome do dia eu me desapego da noite. Acordar não se trata apenas de se abrir os olhos. Também abarca ressuscitar histórias, como se fôssemos um grande livro fechado sobre a mesa de centro de uma sala vazia e, de repente, pessoas entrassem e começassem a folheá-lo, a descobrir a trama, os devaneios, a carência de lucidez alimentada com cuidado nas entrelinhas do roteiro que o destino assina por nós. É assim que me sinto quando o meu marido entra no quarto, fica de frente ao espelho para dar o nó na gravata. Veste-se bem, recende a perfume caro. Nem se vira para o adeus e sai: as malas já postas à porta, prontas para segui-lo seja aonde for.

Eu tendo de acordar, levantar e viver. Eu que não gasto o meu afeto com o imediatismo, prefiro a falência homeopática, como se isso a tornasse secreta. Prefiro o silenciar aos poucos ao grito de histeria ao despencar em abismos.

Não se iludam… Não me fere a partida do homem da minha vida durante dez longos e tortuosos anos. Não me importa que no armário minhas roupas mofem sozinhas. Não me incomoda a casa vazia, sendo vítima da ausência de alguém. Assim como tanto faz se à mesa do café somente os meus pés se acomodem por debaixo dela. É assim que sou consumida pela vida: calmamente, no frescor da extravagância.

Em frente ao espelho, nua em pelo e a esgueirar defeitos. Cabelos pingando, molhando o carpete e ofendendo o esmero, antes de hoje, um dos senhores da casa. Seios flácidos, resquícios de todas as vezes que dei de beber ao amante desinteressado de mim, mas que não se atrapalhava ao me confundir com um mero instrumento de apaziguamento de desejo, contanto que sua fome fosse ressarcida pelo destino que injetou a minha existência na sua vida. Ele me amou com o amor ressentido. Durante todos esses anos, gozou em mim a sua mágoa, enchendo o meu ventre de uma paixão estéril. Dávamo-nos por satisfeitos ao engolir a defesa de que não era nossa culpa, que não fora nossa escolha. Depois, consumia-me em tranquilidade ao voltar para a sala e passar a madrugada lendo Balzac, desinteressada de realidade ou de compreensão, ou das normas estabelecidas para que levássemos a vida sem dela verter uma gota de insanidade que fosse. Assim, eu me embrenhava na imaginação e, por meio dela, rejuvenescia delírios que guardava para consumir a sós.

O tique-taque do relógio vai contra o meu momento de desapego do tempo. Levanto e vou até ele, tiro as pilhas. Volto para a mesa e me sento como se nada tivesse acontecido nos últimos anos. O silêncio é impenetrável.

Observa-me, preocupada com a minha situação de esposa abandonada, quarenta e cinco anos, sem filhos, desleixada com a aparência. Pergunta se não vou tomar jeito, porque sou mulher adulta e preciso reagir. Será que ela sabe que o futuro nunca me interessou? Que não me doeu em nem um milímetro do corpo, que dirá da alma, a partida do Ernesto? O que ela sabe sobre mim, além do fato de termos nascido da mesma mãe e herdado os olhos azuis aguados do nosso pai? Nada.

Adelaide é mulher de aceites. Basta-se na perseverança em viver uma paixão afrodisíaca, a mesma que se torna uma rotina pálida quando o sol nasce. É mulher da noite, com o descuido de ser de um homem só. Ainda tem coragem de me cobrar reações, minha pobre irmã. Nem parece tão mais moça do que eu, que quinze anos separam nosso início de jornada sobre os corpos dos nossos homens. Estamos tão parecidas, sem idade, sem vislumbre. Ela mais colorida do que eu no seu vestido vermelho de tafetá, na ansiedade de seguir para a festa de aniversário da cunhada. Celebrar o nascimento de quem a despreza e a ridiculariza, tudo para poder se deitar, mais tarde, com um homem que em público a trata como uma dama. Porém, quando a sós, nos arrabaldes da noite, degusta-a como se a luxúria fosse sua profissão, impondo que desempenhe, logo de manhã, a função de serviçal.

Da vida todas somos. Mulheres coordenando hormônios e querenças, fabricando castelos na areia e também na planta dos prédios em construção. Aperfeiçoando a capacidade de sobreviver às faltas, vadiando com as próprias emoções em busca da raspa na panela, de alguém que lhe ofereça um olhar de afeto por década que seja, mas que haja motivo para a espera.

Adelaide insiste para que eu vá com ela à festa. O café da tarde ainda à mesa, chegando frio à noite que despenca e escurece a sala de jantar. É ela quem se dá ao trabalho de se levantar e acender a luz, me fazendo piscar até acostumar os olhos. Ela diz que preciso de um novo homem, um que me queira de fato, que me deguste decentemente, e não tenha se casado comigo a pedido do nosso pai, para somar fortunas e unir famílias, brasões. Eu me nego sequer a responder e ela encoleriza-se, desfazendo a cara bonita que maquilou para a orgia de ofensas que sempre acontece, após suas festas familiares.

Sai batendo a porta, gritando que arrumará alguém que me coloque nos eixos e me faça relembrar de quando, ainda jovem, eu tecia elogios ao amor. De quando pelos eriçados acompanhavam sorridos forasteiros. Sorrio complacente, sem mover um músculo para observar sua saída dramática. Sorrio ao me lembrar do quanto ignorava as rasuras emocionais e de que nada há de mais inocente do que renegar as experiências falíveis, provenientes de amores suicidas.

Calço os chinelos largados debaixo da mesa e vou para o meu quarto, enfio-me debaixo das cobertas e fecho os olhos. Adormeço embalada pela poesia que há nos amores risíveis. Toda a poesia consumida durante a aridez de prazer começa a fazer sentido nos sonhos.

Ainda com o telefone na mão, há quanto tempo? Ela não compreende que tudo o que quero é sossego? Que ler os meus livros, na cama, no lugar do sofá, tem sido significativamente agradável. E que me dedicar novamente a pintar quadros me basta por agora? Mas não… Falo sobre a irmã mais nova, afetada pela displicência do romantismo, corrompida pelos fados, tangos e boleros, e pela assiduidade com a qual ama sem ser amada.

Como pôde? Grita ao telefone, que me avisou e eu deveria saber. Só que é armadilha. Sempre recorre a elas. É amigo do Horácio! , amigo do marido. E daí? Seria, então, outro bonachão? Por que eu deveria aceitar isso? Quem disse que eu quero homem? Paixão? Volúpia?

Adelaide é a irmã que vive querendo fazer com a vida alheia o que não é permitido fazer com a própria. Ela vive à base das conquistas e alegrias que pertencem aos outros. É quem sorri sempre que vê alguém sendo feliz, ainda que seja um estranho, mesmo que não passe de observar de longe, de alcançar sem tocar.

Cinco horas de uma tarde de quarta-feira. Corro até a cozinha e abro a geladeira. Quase nada lá. O que darei de comer ao desconhecido? Pizza? Pão de queijo? Torta de frango congelada? O que beberemos? Chá de hortelã? Licor de cicuta?

Ligo para o restaurante, peço socorro ao dono, um amigo de longa data e de muitas dúvidas gastronômicas. Peço qualquer coisa saborosa. Mas me dê uma ideia do que deseja, Maitê! , e respondo que não importa, contanto que seja para dois e entregue às sete em ponto. E que ele também escolha um bom vinho, porque, da vida pomposa que tive, rejeitei etiqueta e conhecimentos gastronômicos e alcoólicos. Do vinho só me lembro de tê-lo sorvido para suportar as festas promovidas pelo Ernesto e para aguentar os olhares inquiridores dele ao comprovar, devidamente, que eu era, e por opção, uma péssima anfitriã.

Não servia para a função naquela época e ainda não sirvo, nem quero aprender a servir. Então, aparece esse homem, amigo do Horácio, quem acha que devo encarar a realidade a ferro e fogo, como se não soubesse dos meus passeios pelos infernos disfarçados. Tem a Adelaide, que nem me deixou aproveitar um pouco da solidão com ausência, porque sentir solidão na presença de Ernesto era requintado sofrimento. Na ausência, é quase poesia.

Sete horas, comida na mesa, vinho, velas. Adelaide me fez jurar que eu colocaria velas nos castiçais, que seria um jantar charmoso. Como ela não exigiu mais nada, decidi eu mesma pela roupa. Tocam a campainha e eu respiro fundo antes de atender. Quem é? É ele mesmo, Rodrigo, amigo do marido da irmã doidivanas que decidiu arranjar um encontro para a irmã insossa. Abro a porta, fitamo-nos: desleixados da cordialidade.

Poucas palavras foram pronunciadas durante o jantar. Rodrigo, assim como eu, brincava com os talheres, aborrecido que estava com a situação. Certamente, Horácio o convenceu a jantar comigo cometendo chantagem. O que seria? Rodrigo o estelionatário? O assassino? Não… Rodrigo o primo de qualquer grau que não o primeiro, que se mudou recentemente para a cidade. Conhece quase ninguém. Não tem com quem passar tempo. E os abandonados se merecem, não?

Nem sempre.

Às vezes, ele se dá conta de que eu estou presente e sorri. Faz elogio à comida. Confesso que pedi de última hora. Desfia um rosário de adjetivos para o vinho. Assumo que não entendo nada do que ele diz e que só entendo de buquê de café e de flores do campo. Porém, não podemos negar que somos companheiros em uma mesma situação. Assim como eu, ele deseja sumir do mapa, mandar o mundo plantar batatas, e com ele, que sigam a Adelaide e o Horácio. Opto pela solidariedade.

Conversamos durante pouco mais de uma hora, sentados no chão da sala. O terno de fino corte dele jogado sobre o meu tapete persa. Pergunta se eu sempre recebo vestindo moletom. Bancando a ofendida, esclareço que é o meu moletom preferido e ele sorri, alertando-me de que isso muda tudo e dá status ao feito. Ele me conta que se mudou para a cidade para resolver um problema complicado, mas que não deve ficar por muito tempo. Comento que esse foi o encontro arranjado mais condenado que alguém poderia ter. Assim, tecendo ironias a respeito de quem somos e de quem Adelaide e Horácio gostariam que fôssemos, percebemos a empatia se juntando a nós, cruzando pernas e fazendo caras e bocas, atrevida que só. Sedutora.

Pergunta por que o meu casamento acabou. Respondo que nunca fui casada de fato. Pergunta por que nunca fui casada de fato. Respondo que isso já não tem mais importância e merece o esquecimento. Sorri, pergunta se me acho uma mulher de coragem.

Meu pai, aos prantos, veio a mim e pediu que aceitasse, porque era para o bem da família. Até então, cuidar de quem se ama para mim significava proteger, não sacrificar. Aceitei, convencida de que a minha vida ofereceria a todos da família o bem-estar que muitos não poderiam alcançar, além dos títulos, rótulos, conveniências, brasões, símbolos pelos quais meu pai daria a vida. Emprestei a minha ao me casar com Ernesto, até o dia da morte do meu pai, quando pedi a mim de volta. Não acho… Sou uma mulher de coragem.

Rodrigo se concentra no vinho. Ainda bem que meu amigo Chef é conhecedor dos hábitos do ser humano, pois sabia que precisaríamos de outra garrafa e enviou a extra. Diz que me acha uma mulher muito bonita. Rebato alegando que ele não tem realmente ideia se a minha suposta beleza o conquistaria em outra ocasião. Por quê? Seios flácidos, pele ressecada, barriga eminente, quarenta e cinco anos contra quantos dele? Trinta e dois? Trinta e três? Ele sorri, mas parece triste. Pergunta se eu tenho medo da morte. Serenamente, respondo que não, que a tenho como companheira de viagem da vida.

Então, chegamos àquele momento constrangedor em que percebemos o que aflige o outro, que o encontro não acabará e pronto. Ponto. Ele deita a cabeça no meu colo, homem destinado a ser filho meu por algum motivo. Não resisto à maternidade do acaso e pergunto o que há, preocupação pelo estranho que choraminga, enquanto aperta, de leve, a minha coxa. Um silêncio constrangedor e pouso a mão nos ralos cabelos dele. Agora o percebo debilitado, apesar de bonito, grandes e vivos olhos negros. Ele se senta bem próximo a mim, me encara enquanto abaixa o zíper da minha blusa e segura o meu seio, como se nele morasse algum tipo de bálsamo. Olhar lacrimejante o dele, o meu é de susto, e de certo prazer, porque ainda que me preocupe aquele tom de tristeza na feição dele, me faz estremecer sentir os seus lábios me tocarem. Assusta-me alimentar outro homem assim tão cedo, antes mesmo de desejar fazê-lo.

Escorrega o corpo sobre o meu, beijando a minha boca, um regalo da vida para uma mulher desafinada na paixão. Abraça-me, entregue a um choro que me enegrece ainda mais a alma. De onde vem essa tristeza? Por que ela bateu na minha porta? Bastava a minha própria ser companhia em casa.

Deitada no chão, ele aconchegado ao meu corpo, cabeça deitada na minha barriga, como que tentando ouvir algum conselho vindo de dentro de mim. Mãos segurando os meus quadris. Limito-me a acariciar suas costas com uma das mãos, temendo o desfecho daquele encontro mais cego do que poderia Adelaide imaginar.

Pergunta se estou bem. Sussurro que sim. Pergunta se quero fazer amor. Respondo perguntando se não há como comprarmos feito. Sinto uma gargalhada contida ressoar na minha barriga e essa sensação me causa outra: como se um leve choque navegasse pelo meu corpo. Pergunta se já fui feliz. Não respondo. Insiste. Digo que não sei, mas que provavelmente sim, só que não quero me entreter respondendo perguntas que não foram criadas para serem respondidas. Pergunta se eu poderia lhe fazer um favor, mesmo o tendo conhecido somente há algumas horas, mesmo ele sendo um estranho. Respondo que não deixo estranhos se aproveitarem da minha barriga. Faria? Faria… Por que não? Estamos sempre prontos a fazer favores, prestar serviços físicos ou emocionais, até mesmo os físico-emocionais, quando não há nada a perder. Não tenho nada a perder, tampouco espero ganhos.

Sinto quando uma lágrima escorre na minha barriga, ela que parece até a atriz principal da novela. Ele diz que está doente e não tem muito tempo de vida, que precisa partir antes que a dor o parta ao meio, de tão insuportável que ela vem se tornando, já experimentei de alguns toques dela. Confessa que prefere convidar a morte a ter de esperá-la chegar. Pergunta se eu poderia assisti-lo dançar com a morte, antes de ser engolido por ela, porque o único medo que sente é de estar só nesse momento. Sinto-me estranhamente em paz ao responder sim.

Não é a primeira vez que algo tão inusitado toma conta da minha vida. E ali, deitada na cama que foi minha e do Ernesto, e agora é só minha, um Rodrigo abatido a me amar sem amor. Que seja, ao menos não gozará em mim suas mágoas e sim a melancolia que conheço de cor, ela que já é minha parceira há tempos.

Olhar dele fisgado pelo meu. Aposto que treinou muito para quando encontrasse a pessoa certa. Então é fato: existe a pessoa certa. Eu sou a pessoa certa para ele, que me chama de santa. Sorrio, pensando que todos os santos estão me condenando por ter tomado tal decisão, e provavelmente já providenciaram a minha passagem para o inferno. Mas ele precisa de mim. Uma mulher que não se deixa seduzir pelos castelos construídos na areia ou nas plantas de apartamentos em construção, ou pelo tafetá do vestido de noite capaz de garantir fervorosos momentos de paixão que se esvaem ao primeiro sinal da chegada do dia. Alguém que se dê conta da dor que ele sente e que se proponha a ir com ele até o fim, mesmo que seja para amargar mais tarde. Porque ele sabe da raridade em se ter esse tipo de companhia.

Foi enquanto nos beijávamos, excitados e temerosos, ele sob mim, manuseando a seringa com liquido do qual preferi desconhecer nome e origem, injetando em si a visita da morte, que me senti realmente desejada pela primeira vez. Ironia, empatia, prazer, solidão. Ao assistir Rodrigo fazer a corte à morte no ápice do gozo, ele ainda parte de mim, dei-me conta da fragilidade da vida e das certezas que colecionei ao passar por ela.

Sentada na beira da cama, atrás de mim jaz Rodrigo, meu encontro arranjado. Só consigo pensar no epitáfio: “aqui jaz Rodrigo, homem que escolheu no lugar de ser escolhido”. Em folhetim isso daria ibope, os editores enriqueceriam ao explorar tal história.

Recolho as roupas do chão, me visto. E se choro miúdo, não se atormente por mim, que eu já faço isso sem ajuda. É que me intriga não saber se assisti à morte de um estranho ou de alguém que conheço há muito tempo: eu mesma. Porque sequer amanheceu e eu já começo a fechar as cortinas, querendo que o sol fique lá fora para que eu possa lamentar um pouco mais por esse homem de quem, de uma maneira mordaz, conhecia da companhia o gosto. E que levou parte de mim com ele nessa viagem. Uma parte que jamais terei de volta e da qual sentirei saudade.

Conto que faz parte do livro O observador, lançado em 2016, pela Editora Penalux. Conheça o livro clicando aqui.

--

--

Carla Dias

Escritora, publiquei sete livros, sendo o mais recente o romance Baseado em palavras não ditas (2019). Baterista da banda OsQuatro. Produtora cultural.